domingo, dezembro 19, 2010

Moving On

Não deu tempo de dormir. Já tínhamos dito ao proprietário da espelunca de downtown que sairíamos na manhã do dia seguinte. Tava tudo empacotado, só precisávamos levar algumas coisas até o outro apartamento.
Nossa grande sorte, é que um dos meninos que estavam na banda com a gente, tinha carro. E quando chegamos lá com algumas malas e umas duas caixinhas, Sam foi com sua caminhonete pegar nossos dois colchões, a única cama que tínhamos e um armário.
O lugar era sensacional. Ainda não tínhamos subido pra ver. Era um prédio de dois andares e quatro apartamentos. Sam me contara depois que aquilo era todo o patrimônio que ele tinha conseguido nos vinte anos que estava em Seattle. Ele não podia reclamar, veio pra cá numa fase boa de crescimento, e o dinheiro que tinha conseguido de alguns anos de trabalho na Irlanda, tinha investido tudo ali.
Todos os apartamentos eram iguais. Dois andares. Uma relíquia na cidade que tinha crescido desenfreada e com lugares minúsculos pra morar. Ao lado direito da porta de entrada, estava uma cozinha de piso claro e paredes claras. Uma pequena área de serviço e um banheiro estilo lavabo. A sala era ampla, com um bar próximo a porta e um quarto logo em baixo do piso superior, pequeno, mais aconchegante.
No piso de cima, um quarto, estilo loft, com uma janela de onde se vê toda a vista da cidade, tomando a parede toda e um banheiro, a direita. O chão era todo de madeira, isolando um pouco do frio.
Meus olhos brilharam quando viram o apartamento. Não pensava na hora como iria pagar tudo aquilo. Nossos salários provavelmente não dariam pra cobrir aquele espaço todo, devia custar uma fortuna.
Parei em frente a janela e fiquei estática, olhando o Space Needle majestoso no meio da cidade. Uma lágrima desceu pelos meus olhos, quando ouço uma voz de menino irregular atrás de mim. ‘Precisa de ajuda?’ – perguntava o adolescente por trás dos cabelos pretos caídos nos olhos.
Quando me virei e olhei bem nos olhos dele, disse um não instantâneo e com um sorriso nos lábios. O rosto tomava uma cor vermelha intensa, quando me respondeu, ‘se precisar, estou no apartamento ao lado ’
‘Você é filho do Sam, certo?’ – eu perguntava quando ele já caminhava em direção a escada.
‘Sou sim’ – me respondeu virando subitamente.
‘Prazer, Alice’
‘John’ – me deu a mão que tinha um suor frio e melado.
‘Eu lembro de ter te visto quando viemos aqui semana passada’ – comecei uma conversa enquanto abria uma das caixas e tirava umas bugigangas.
‘É eu estava ajudando meu pai. ’
‘E você é sempre assim?’
‘Assim como?’
‘Prestativo, tímido... Está com medo de mim?’
‘Errr, não... Errr’ – ele me respondia com a voz trêmula
‘Eu não mordo’ – disse rindo
Ele não disse nada, só olhou pra mim por entre a franja caída e deu um sorriso.
‘Seu pai disse que veio da Irlanda, você nasceu lá?’
‘Não’
‘Humm... Mas conhece lá?’
‘Não, nunca fui... ’
‘Tenho vontade, as pessoas dizem que é um país muito bonito’ – falei assoprando o cabelo que caia pela minha testa.
‘Meu pai quer me levar pra lá daqui uns anos, quando eu fizer 18 anos... ’ – falou bem baixo
‘Desculpe, mas quantos anos você tem?’ – perguntei com cara de indignação.
‘Vou fazer 15, daqui há um mês’
‘JURA?!?’ – exclamei num tom alto e de espanto
‘Jura o quê?’ – pergunta Daniel, segurando uma das portas dos armários e olhando estranho pra mim e pra John.
‘Não eu tava aqui conversando com John, o filho do Sam... ’ – respondi
‘Oi, sou Daniel... Namorado da Alice’
Nunca tinha visto o Daniel falar com aquele tom. John esticava a mão e se escondia entre os cabelos pra cumprimentá-lo quando ele largou a porta no chão e virou as costas deixando John mais encabulado que antes.
‘Não liga, ele... ’
‘JOHN, VENHA AJUDAR’ – gritava Sam pela porta, enquanto John já descia as escadas sem olhar pra trás.
Daniel nunca tinha aprontado uma grosseria dessas antes, e eu tinha mais vergonha pelo que ele tinha feito do que ele mesmo.
Enquanto eu limpava o apartamento, os meninos com a ajuda de Sam e John, montavam o armário e a cama. Não tínhamos muitas coisas, então, não demoraria pra colocar tudo no lugar.
‘Vocês têm hábitos diferentes’ – dizia Sam me olhando lavar a cozinha.
Eu ri. E disse que não éramos diferentes de ninguém. Trocando uma conversa cotidiana, disse que precisava ir ao mercado comprar algumas coisas que nós não tínhamos.
Sam disse que tinha algumas coisas no depósito do bar que não estava mais usando. Eram alguns copos, uns pratos, uns talheres. Tinha uma cama velha de John, uma mesa e umas cadeiras, que ele tinha trocado de sua casa, e mais algumas outras coisas que preenchiam uma casa vazia. Perguntou se não estávamos interessados, e se isso não nos ofendia. Aceitei tudo, sem pensar duas vezes.
Enquanto ele ajudava os meninos trazerem algumas dessas coisas do depósito, ele pediu pra que John fosse comigo ao mercado, já que eu não conhecia a região. Daniel se prontificou na hora que iria em meu lugar, mas eu calmamente olhei pra ele e disse que iria.
Lex resmungou algum comentário machista sobre mulheres no mercado e todos rimos, mas Daniel continuava com a mesma cara sisuda.
‘Vem John, vamos’ – disse puxando ele pelo braço.
Descemos as escadas em silêncio sepulcral, quebrada pelas minhas desculpas pela atitude de Daniel. Ele respondeu um tudo bem contido e continuou andando de cabeça baixa e me olhando por entre a franja.
John tinha uma expressão linda de tristeza. Eu não sabia por que, mas toda vez que olhava pra ele, via o semblante de um adolescente só.
‘ Faz tempo que você namora com ele?’ – me perguntou colocando as mãos no bolso
‘Não... Faz uns quatro meses... Nos conhecemos já há quase um ano, mas estamos namorando mesmo há uns quatro meses, por aí’...’e você, namora?’
‘Não’ - monossílabicamente ele me respondeu, sem olhar pra mim, voltando a tomar aquela cor quase arroxeada, de tão vermelha.
‘Faz bem’ - respondi em meio há um riso – ‘ mas me conte mais de você’
‘Não tem muito pra falar... Eu moro com meu pai e estudo... Só’
Enquanto pegava uma cesta no mercado, e começava a olhar algumas frutas pra comprar, perguntei sem pensar:
‘E sua mãe?’
‘Eu não tenho mãe’. Um longo silêncio se fez e eu percebi que tinha tocado em um assunto muito delicado.
‘Desculpe... Eu não queria... Eu não sabia que... ’
‘Não tem problema’ – ele respondeu cortando minhas desculpas – ‘eu não sei quem ela é, e não tenho vergonha de dizer isso às pessoas, se elas me perguntam... ’ – falou firmemente, pela primeira vez,
‘Bom isso é bom, certo?’
‘Acho que é’ – deu de ombros.
Voltamos pra casa falando banalidades e ele começava a se soltar um pouco mais, mesmo me olhando ainda por entre as franjas. John tinha um sorriso bonito de jovem sonhador. Aos poucos vi que podia ganhar sua confiança. Só assim pessoas tímidas vão se tornando amigáveis.
‘Você canta bem, tem a voz boa’ - me disse já subindo as escadas.
‘Ah, tenho nada... ’ – respondi desdenhando enquanto ele sorria.
‘Que bom que vocês estão se dando bem’ – disse Sam, com um sorriso largo nos lábios saído do apartamento.
‘Quem sabe assim, alguém consegue tirar você desse casulo... ’
‘Pai... ’
‘Vamos, eles tem agora que arrumar as coisas do jeito deles, e a gente têm coisa pra fazer em casa’ – resmungou Sam, saindo – ‘Tchau Alice’.
‘Tchau Sam, obrigado por tudo... ’
‘Ah, não é nada não... E já conversei com o Lex sobre o aluguel e as outras coisas, depois você pergunta a ele, ok?
‘Ok’
‘Vamos menino, vai ficar parado aí, vem logo me ajudar!’
‘Tchau, Alice’ – ele falou sem olhar nos meus olhos e quase correndo atrás do seu pai. Segurei-o pelo braço.
‘Tchau John... ’ – dei um beijo em seu rosto. ‘Viu, eu não mordo... ’. Ele sorriu e me olhou novamente por entre a franja.
‘JOHN!’. Gritava Sam enquanto ele corria olhando pela porta pra mim antes de entrar.
Quando entrei, Daniel estava saindo da cozinha:
‘Demorou né?...Não era só pra comprar umas coisinhas?’
‘Estava conversando com o Sam aí na porta’, respondi seca.
‘Garoto idiota aquele filho do Sam... Tem cara de idiota... Tem... ’
“Daniel, não gostei do jeito que você tratou o menino... ele tem só 15 anos e não gostei do que você fez com ele... me pareceu que o menino tem mais maturidade que você’
‘Hum, acabou de conhecer o fedelho, e já ta defendendo?!? O que ele fez no caminho do mercado com você? Fez você go... ’
‘Alice, tem uns panos aqui, não sei se... ’, descia o Lex com uns panos na mão, enquanto Daniel apertava meu braço.
‘Pode deixar aí na cozinha que já vou olhar, vou guardar essas compras’, respondi soltando meu braço da mão de Daniel e indo pra cozinha.
‘Está tudo bem?’
‘Está’ - respondi sem olhar nos olhos de Lex.
Enquanto guardava as compras, derrubava umas lágrimas de raiva e pensava que muitas coisas em minha vida, a partir dali tinham que mudar. Muitas. Subi pra colocar as minhas roupas dentro do armário e alguns objetos pessoais, quando Daniel sai do banheiro. Abraçando-me por trás e passando a mão sobre meu corpo, me beijando no pescoço.
‘Desculpa’
Não respondi. Ele me virou com força e me colocou entre ele e a parede, enquanto tirava meu cinto.
‘Fiquei com ciúmes... ’ E me beijava enquanto eu tentava me livrar dele.
‘Ciúmes de que? O menino tem 15 anos Daniel... 15 anos... ’ – respondia enquanto fugia de suas carícias.
‘Mas sabe transar. Nessa idade, todo mundo já sabe transar... ’ - me segurando pelos braços e me empurrando com seu corpo intensamente contra a parede, descendo a mão pelos meus braços e se despindo.
‘Daniel, não gosto desse tipo de atitude... Não sou assim, e não quero que você seja assim comigo... ’ – tentando sair.
‘Fiquei louco de vontade agora... De você ser minha’.
Ele sabia o que fazer pra que eu caísse na tentação do desejo e quando tudo tinha terminado me soltou, e saiu perguntando:
‘O que vai ter pra gente jantar?’
‘Macarrão ao molho’ - respondi descendo pela parede, sentando ao chão e olhando pela janela. Era quase noite em Seattle.

quinta-feira, setembro 03, 2009

A noite de lua cheia

Na noite seguinte, iríamos pedir nossas contas. Queríamos receber nosso dinheiro dos dias trabalhados, somente. Não nos importava mais nada, só o que trabalhamos.
Éramos ilegais, não podíamos chegar exigindo algo que não seria nos dado. Trabalhamos até o final da semana, e não trabalharíamos mais.
Aquela seria a última noite downtown. E eu estava feliz porque, no dia seguinte, deixaríamos nossos tão queridos insetos pra trás. E dormiríamos num lugar limpo, com chuveiro quente e aquecedor.
Era domingo, eu não sabia mais o que era cansaço. A semana tinha sido de tanta correria e alguns percalços que eu só via a minha tão sonhada folga de alguns dias pra poder organizar, nosso novo apartamento e me preparar para os novos empregos que estavam por fim.
Quando lavei o último copo às quase quatro e meia da manhã, olhei pro Lex, tirei o avental e disse ‘fim’. Seria o fim, se aquele fim de noite não tivesse se tornado um pesadelo constante de coisas que só acontecem na imaginação de pessoas supersticiosas.
Cheguei em frente ao caixa do bar, ouvindo uma discussão calorosa entre Daniel e o dono do bar. Cheio de razão inexistente o homem dizia que tínhamos que cumprir um ‘contrato’, que por nós nunca tinha sido assinado. E se não trabalhássemos mais um mês de graça, nada feito de ver nossa grana.
“UM MÊS DE GRAÇA?!?”, gritou Daniel quando chegamos perto dele. E ele com um sorriso de sádico sinalizou afirmativamente com a cabeça. Era pegar ou largar.
Tudo bem, éramos ilegais, mas não éramos escravos de ninguém. Aquilo era o cúmulo de todos os cúmulos. Ninguém ia trabalhar de graça pra ninguém. E ninguém era obrigado a passar por aquilo, por piores que fossem nossas condições financeiras.
Não tinha argumento contra o sádico. Sabíamos que ele não prestava, mas não sabíamos que era tanto. Era aquilo, ou então ele ficaria com nossos instrumentos em troca do seu ‘ absurdo prejuízo’.
Não dava pra chamar a polícia, não dava pra processar, nada dava. O que dava era abrir mão de nossos salários. E isso ninguém queria. Faria falta na hora de colocarmos nossas vidas nos eixos.
Foi quando o sádico resolveu dar outra sugestão. Se eu dormisse com ele, ele nos daria o salário e deixaria com que levássemos embora nossas coisas, afinal, toda gringa era prostituta mesmo.
Lex voou no pescoço do sádico, enquanto um dos seguranças me segurou pelo braço e o outro se atracava com Daniel.
Foi arranhão, mordida, soco, tapa, sangue. Nossos instrumentos pra fora e salário voando de nossas mãos.
O que a gente ia fazer pra comer e pagar o aluguel do mês pro Sam, eu não sabia. Pela primeira vez, eu tinha sofrido mais do que na pele o que era o preconceito. E depois de passar por isso, eu começava a redefinir mais as idéias que tinha em mente.
Meus braços tinham marcas roxas. Daniel tinha um nariz sangrando e um corte na testa. Lex um olho roxo e uns hematomas se espalhando pelo corpo.
Sentados na calçada, não tinham palavras. Não tinha nada. Eu segurava o violão elétrico, Daniel sua guitarra e Lex o que tinha sobrado da sua. Foi quando eu olhei pra cara de Lex e vi sua expressão de ‘estamos duros’. Comecei a rir.
Não era um riso normal. Era um riso contido de raiva, desespero, trauma, esquizofrenia. Sentada no meio fio, com os braços caídos sobre as pernas, meu corpo doía todo enquanto meus músculos se mexiam por vontade própria. Daniel deitado na calçada, a dois quarteirões do bar, ria de braços abertos, olhando pro céu. Lex balançava sua cabeça e ria.
A desgraça era feita. Riamos de nossas infelicidades, que até ali, não eram poucas. Riamos de nossa condição ridícula de acreditar nas pessoas. Ríamos de nós mesmos, porque aquela cena era a mais bizarra de todas.
Daniel passava suas mãos em minhas costas, e dizia ‘que linda noite de lua cheia’, enquanto o sol começava a despontar.

terça-feira, agosto 18, 2009

Out of Downtown

Era aquilo, e sabíamos fazer de melhor. Tínhamos que sair de downtown urgente. Ninguém mais agüentava aquele apartamento péssimo que morávamos, nem nossos amigos insetos.
Se conseguíssemos o emprego, teríamos mais condições de arrumarmos pelo menos uma coisa melhor, e com um aquecedor que funcionasse.
Sam era o nome do dono do bar. Era baixinho, gordo e simpático. Suas bochechas vermelhas e os olhos claros nos davam uma impressão de confiança extrema. O sorriso estava sempre no rosto, mas lá no fundo, víamos uma ponta de vida sofrida, perda, luta e muito orgulho de ter chegado vivo, até a idade que seus fartos cabelos brancos exibiam.
A conversa entre nós fluía bem. Parecíamos ter nos conhecido há anos, mesmo sabendo que estávamos ali só por algumas horas. Ele era imigrante, mas tinha chegado a Seattle quando as coisas por aqui ainda eram diferentes.
Ele já não era ilegal como nós. Tinha conseguido tudo com seu esforço. E não tinha passado por discriminação como nós, por ter a mesma língua da região. Apesar do sotaque que já estava sendo perdido, irlandeses falavam a língua nativa. Era um ponto positivo.
Sentado ao fundo do balcão, havia um garoto de cabelos lisos, bem pretos e olhos bem claros. Um pouco mais verdes que os do pai. Tinha traços mais finos e menos marcantes. Se os cabelos fossem compridos, poderíamos o confundir com uma garota. A pele era branca como pancake.
Ele olhava atentamente a tudo através da franja que insistentemente caia em seus olhos. Tinha um ar tímido e se via que não passava de um garoto de 16 anos pelas suas fartas espinhas no rosto.
Sam nos apresentou como seu filho. Disse que mesmo sabendo do risco que corria, John, esse era seu nome, ajudava nas coisas corriqueiras do bar. Não tinha ninguém que tomasse conta então, as tarefas domésticas eram divididas entre os dois.
John olhava fixamente para as coisas, e levantava as sobrancelhas quando algo diferente o encantava. Não sorria. Mas a expressão de seus olhos dizia o porquê não deveria sorrir. E não me engano muito quando descubro o sentido das pessoas.
Fomos convidados a trabalhar no bar para tocar. Eu o perguntei se precisava de uma garçonete. Poderia ajudar com outras coisas, como limpar, ficar no bar, essas coisas. Sam me ofereceu primeiramente um emprego de garçonete. Disse que estava com uma garota que ia ter licença maternidade e não ia mais trabalhar, já que o seu novo marido preferia que ela parasse de trabalhar. Fiquei com a vaga da garota. Começaríamos todos na próxima semana. De quebra, Sam nos ofereceu um apartamento no prédio onde tinha o bar, pra ficarmos mais próximos pra que pudéssemos ensaiar no bar mesmo.
Voltamos todos doidos de alegria pra casa. Já na próxima semana começaríamos a trabalhar. E se conseguíssemos, em breve estaríamos saindo daquele lugar. Já não era sem tempo.
Daniel me abraçava e me beijava muito naquele dia. Não sei se pela primeira vez, era um esforço garantido, alguém que não tinha tido preconceito algum conosco. Era uma satisfação. Uma graça. E Daniel estava mais do que acreditando em tudo. Falava muito, gesticulava muito, sorria um sorriso diferente.
Uma semana nos preparando, pensando, como daríamos um fim na exploração que estávamos vivendo. Trabalhando naquele bar perto de casa, ganhávamos pouco, e mal dava pra fazer algo diferente.
A lanchonete ainda dava pra manter, mas trabalhando pro Sam, do outro lado da cidade, a gente não ia conseguir conciliar os horários, principalmente nos dias da apresentação. Já naquela mesma semana, eu tinha procurando alguma outra coisa ali por perto, pra poder ficar com um emprego a noite, e outro de dia.
Meu objetivo era o curso de produção, eu não podia estragar tudo. Precisava daquele sacrifício para manter as coisas no lugar. Eu já sabia que não ia ser fácil a vida fora de casa, e que sofreria do cansaço e de não ter mais as coisas na mão. Eu não me importava. Por um instante eu acreditava que a estúpida independência valia a pena.
E na idéia de que tempos melhores viriam, entrei de cabeça em um compromisso com minhas responsabilidades. Juntava cada centavo que podia em prol dos meus planos. Fiquei obcecada por trabalhar. Esqueci de tudo, só via hora do emprego e a idéia de começar o curso em breve.
Mas ainda tinha que sair de onde estava e receber pelo serviço do mês. Deitada na cama, enquanto Daniel tirava minha roupa como num frenesi tentador, eu fechava os olhos e pensava que nada mais a partir dali poderia me abalar.

quinta-feira, junho 11, 2009

Daniel

Daniel apareceu duas semanas após estarmos em Seattle. Nada me foi mais surpreso, porque eu poderia esperar qualquer coisa em minha nova vida, mas não esperava um fantasma do passado.

Daniel era alto. Tinha os cabelos castanhos claro e os olhos castanhos. Mãos firmes. Boca vermelha, carnuda. Falava grosso e tinha ar de quem não se importava muito com o que os outros falavam.

Lembro-me da primeira vez que vi Daniel. Estava encostado na parede do colégio, com a cabeça erguida, mas os olhos baixos. Tínhamos uma amiga em comum. Ela me falava muito dele, e de como eu ia gostar de sua personalidade logo de cara.

Daniel não tinha o ar de menino dos outros caras do colégio que eu conhecia. Parecia experiente, esperto e sabia como falar, diferentemente dos outros. Fui subitamente arrebatada de uma sensação de perigo quando o vi, mas me entreguei as suas conquistas.

Não foi nem a primeira, nem na segunda e nem a terceira vez que estivemos juntos que nos beijamos. Ainda lembro como se fosse hoje. Ele tocou a campainha da minha casa, me procurando, com lágrimas nos olhos. Abraçou-me insistentemente e de repente me beijou, sem que mesmo esperasse.

Ficamos por meses a fio, mas nunca estivemos juntos de verdade. Nunca foi um compromisso completo.

Daniel tinha um grande poder de persuasão. Era inteligente, astuto e sabia como fazia para comover as pessoas que estavam ao seu lado. Tinha um sorriso inconfundível e era só ele pedir para que qualquer um concordasse. Era interessante, atraente e fazia pose de carente, conquistador.

E quando foi a Seattle, disse a mim que fez o diabo para chegar ali, que ele não poderia mais perder as oportunidades que a vida lhe oferecia, e sim aproveitar ao máximo tudo aquilo que o destino tinha lhe dado.

E foi aí que ele percebeu que eu era uma oportunidade, e que ele não podia deixar para trás. Correu atrás de todas as pessoas que ele conhecia para poder me encontrar e saber exatamente onde eu estava.

Resolvemos então voltarmos nosso relacionamento. Arrumamos um emprego para ele na mesma lanchonete em que eu e o Alex trabalhávamos. E de quebra, resolvemos alugar um apartamento.

Uma das piores coisas que fizemos. O lugar era péssimo. Cheio de baratas e ratos. A gente não via água quente quase nunca. E o aquecedor era péssimo. Como tem mais dias frios que dias quentes, então, foi horrível.

Eu e Daniel dividíamos a cama enquanto o Alex dormia num colchão no chão. O lugar era basicamente um quarto e uma cozinha, bem estilo americano. As paredes eram daquele branco meio sujo e o chão era de madeira. O banheiro era pequeno, nojento e nada limpava aqueles azulejos.

Nossa cozinha tinha um fogão e uma geladeira. Os pratos eram contados, assim como os talheres e os copos. Tudo lá dentro era de segunda mão. Não tinha nada novo.
As baratas eram habitantes assíduas da casa. Nessa época perdi o total medo que tinha por elas. Os meninos chegavam a apelidá-las, e eu vivia com um chinelo à mão para exterminar qualquer uma que viesse ao meu caminho. De vez em quando apareciam alguns camundongos também.

O aluguel era pago em dia, mas como éramos estrangeiros, o proprietário fazia descaso às nossas reclamações e nada era consertado como pedíamos. Aliás, de todo o tempo em que ficamos lá, nada foi consertado, a não ser por nós mesmos.
Dava desânimo de morar ali, mas era o que nosso bolso podia pagar. A rotina de nossas vidas era tão grande que não dava tempo para brigas e discussões. Dávamos-nos bem na medida do possível, e meu relacionamento com Daniel era tranqüilo, morno, sem muitas emoções.

Até hoje me pergunto se, algum dia, senti algum tipo de paixão por ele. Nunca obtive essa resposta, por vários motivos.

Depois de algum tempo juntos, percebi que não era encanto que ele sentia por mim, mas sim só um esteio para que ele não se sentisse sozinho. Eu fingia que não sabia de suas traições e ele fingia que mentia muito bem para mim.

Mesmo assim, Daniel foi o primeiro homem a me tocar. O primeiro homem que foi para cama comigo. E eu sempre achei que ia ser especial, mágico e tudo o que uma garota adolescente imagina que vai ser.

Não teve velas, nem perfume, nem música ambiente muito menos um eu te amo no final. Teve só desejo, atração. Não passava disso. Eu me sentia muito atraída por ele, mas não sentia nada. Não tinha ciúmes, não havia compromisso, respeito, dedicação. Era puro contato físico, e não era dos melhores.

Na época, importava muito mais os meus planos de fazer o curso de produção musical, o trabalho e a idéia de voltar a estudar, que as outras coisas eram só fatos.
Daniel era como um ator coadjuvante em minha vida. E eu também era na dele. Éramos jovens e ele muito mais inconseqüente do que eu.

Passávamos muito pouco tempo junto, e quando estávamos juntos ou assistíamos TV, ou estávamos ensaiando, tocando músicas. Tínhamos montado uma banda ele, eu, Alex e mais dois caras que trabalhavam com a gente na lanchonete.

Arrumamos um lugar pra trabalhar a noite. Pagava bem e podíamos de vez em quando, tocar as nossas covers. Era mais um lugar de exploração, mas até aí, quem reclamou?
Já fazia alguns meses que Seattle tinha ilegalmente nos acolhido. Alex quase não ficava junto conosco, com medo de atrapalhar nossa tão feliz relação, e saía quase todas as sextas e sábados, sozinho.

Numa dessas saídas, foi parar em um bar do outro lado da cidade. E quando a bebida começa a virar confessionário, ele contou tudo ao senhor que estava o servindo. Todas as coisas que estávamos passando desde que chegamos aqui. Alex só faltou dar o número de nossas contas bancária, que não tínhamos. Óbvio.

Como uma estratégia divina do destino, o tal senhor era dono do bar. E se comoveu com a situação do moço. Fomos então, chamados para fazer uma apresentação a ele. Claro que foi tudo bem, e de cara o dono gostou da gente.

Daniel sorria a mim, como nunca tinha sorrido antes. Pela primeira vez, vi uma satisfação em seus olhos. E claro, só fui ver essa satisfação novamente meses depois.

sábado, janeiro 10, 2009

Space Needle

Chegamos a Seattle na primavera, eu e o Alex. A cidade tinha um ritmo só dela. As coisas pareciam muito diferentes e distantes de minha realidade. Tudo era novo, perfeito e lindo.
Passamos duas semanas procurando emprego e visitando a cidade. Visitamos o The Seattle Center Fountain, o Parque Nacional, o Mercado de Peixe.
Lembro que no Warren G. Magnuson Park, mais especificamente no National Oceanic and Atmospheric Administration, estava um dia lindíssimo. Lá existem umas esculturas chamadas “A SOUND GARDEN”. E era de onde a banda Soundgarden tinha tirado o nome que os batizariam por alguns anos. As esculturas têm uma forma estranha, são de metal, e onde bate o vento, elas fazem um som. Um barulho meio indiscritível.
Claro, eu tinha que visitar o Space Needle. O monumento de toda a ostentação decadente de uma cidade quase portuária, mas com cheirinho do mercado de peixe. Fiz a minha tão sonhada viagem de trem. Foi maravilhoso. As fotos saíram um pouco ruins, porque, enfim, o dia tava nublado.
Sentei no trem às dez da manhã. Era tudo diferente. Eu podia ver a garoa caindo no vidro, fazendo aquelas gotículas de água quase imperceptíveis. A cidade estava toda nublada e eu era só curiosidade. Nada mais fazia sentido a não ser aquele momento.
As cadeiras do trem eram azuis, aveludadas, e toda cheia de nove horas. Meu coração pulava insistentemente em meu peito. Era a primeira vez que me via sozinha e cheia de responsabilidades em minhas mãos.
A responsabilidade de tocar minha vida, de dar um rumo nela. De me preocupar com contas a pagar, com meu futuro. Sem ninguém pra pensar por mim, nem pra agir por mim, nem pra dizer o que eu deveria dizer.
Enquanto o trem se movia eu pensava se poderia dar conta de tudo. Se eu não voltaria à casa dos meus pais arrependida, perdida, machucada. Apertava os olhos numa tentativa de esquecer esses pensamentos. Eu mal sabia o que estaria por vir.
Cheguei ao Space Needle e enquanto o elevador subia, eu olhava a cidade ficar pequenininha lá de cima e pensava que tinha todas as oportunidades em minhas mãos, era só pensar e saber usá-las.
Aquilo era lindo, mesmo nublado. Tinha um ar diferente, um gosto diferente. Gastei parte de minhas economias para poder comer no restaurante lá em cima, mas tudo valia a pena. Até o Alex fazendo pose e quase caindo lá de cima para tirar uma foto.
Toda vez que olho pela janela e vejo o monumento, lembro daquele dia. Do friozinho na barriga, da boa melancolia. Da saudade de um tempo em que eu ainda era inocente. Um tempo em que eu acreditava que a vida era feita de ideais e não de fatos.
O episódio do Parque Nacional (um deles, porque têm tantos), foi o mais engraçado. Estava sol, e estávamos fazendo uma horinha sentados na grama. O Alex resolveu subir numa árvore super bonita que tinha perto da gente. Ficou todo empolgado pra eu tirar uma foto, pois então, subiu na árvore e fez cara de feliz.
Mas feliz fui eu que quase rolei no chão de tanto rir. Ele sentou no galho, e de repente começou a fazer várias caretas. E de caretas ele passou a berros e quase quebrou o galho de tanto pular. Nisso, ele vira e fala "tira logo essa foto, eu estou sendo comido por formigas!!!"
O mais engraçado foi que ele não saiu do galho, enquanto eu não tirei a foto. E pior, saiu nela, com cara de que ele estava feliz, por estar sentado em uma árvore tão inofensiva.
Visitamos as montanhas e andamos que nem uns condenados para ficarmos em uma cabana bem simples. Washington (estado onde fica Seattle, a sua capital), tem umas montanhas lindas. É frio, mas é gratificante. É um silêncio quase sepulcral. Uma paz que não presenciei mais, depois desse episódio. De um lado e do outro, você só vê montanhas e floresta. Enquanto caminha e o ar gelado bate no rosto. Nunca tinha visto nada igual.
Depois fomos conhecer o Píer e o Mercado de Peixe, que também são atrações da cidade.
Aqui existem ‘coffee houses’ em todos os lugares. Eles recebem grãos do Brasil e da Colômbia, mas o café não é como aí em baixo. É estranho e se consome uma quantidade de café absurdamente maior que um simples cafezinho. Parece que se toma mais café do que água.
E o frio? É muito frio. Frio a maior parte do tempo. Para quem estava acostumado com dias ensolarados e muito calor, se acostumar com esse tempo foi um tormento. Em casa tudo quentinho (quero dizer, depois que mudamos de downtown) e fora, um frio dolorido. Dá vontade de dormir o dia todo.
Mas eu falava das atrações turísticas. Das atrações diurnas, passamos às atrações noturnas. Visitamos cada buraco que nosso dinheiro suportava. A vida noturna é bem agitada. Lugares que comportam todos os tipos de pessoas. Alguns muito bons outros muito ruins. O único inconveniente aqui é que os bares fecham muito cedo. Mas tudo vale a pena.
Nesse ponto estávamos eu e o Alex, procurando emprego e nos hospedando em um hotelzinho não lá muito bom, downtown.
Eu digo downtown, porque aqui quer dizer centro da cidade. Tudo fora de downtown é periferia. E por incrível que pareça morar na periferia é melhor. Mas como não tínhamos dinheiro, estávamos em downtown. Pelo menos o chuveiro era quente e o quarto era limpo.
Mesmo com todas as nossas saídas, continuávamos a procurar um emprego. Até que achamos uma lanchonete perto do hotel em que nos contratou para trabalharmos lavando pratos e servindo comida. Se ganha mais dinheiro fazendo isso, do que trabalhando muito aí em baixo. Mas o custo de vida aqui é muito alto. Tudo é muito caro.
Nesse meio tempo em que começamos a nos estabilizar, eis que recebo uma bela “surpresa”. Num belo dia chuvoso de Seattle, me aparece Daniel.

sexta-feira, dezembro 19, 2008

Dezoito Anos

Nasci. Hoje não importa quando, nem como, mas nasci. Passei infância e adolescência no meu país. Por vezes desejei conhecer outros lugares, mas nunca tive tal independência financeira e nem pessoal.
Mas não conhecia, ou melhor, não conheço o país em que morei por dezoito anos. Um grande erro meu, devo admitir. Nada como a pátria que nos acolheu. Nada como a língua que você conhece, e domina. Nada como o calor das pessoas as quais você está acostumado a ver todos os dias.
Infeliz daquele que imagina ser mil maravilhas fora de seu lar. Infeliz daquele que imagina que o mundo é grande e cheio de novidades e oportunidades que possa lhe aparecer. Nem todo mundo é assim. Nem todas as oportunidades são merecedoras de segurarmos em nossas mãos.
Minha infância foi normal. Minha casa era estável e cheia de afetos que os murais gostam de mostrar. Pena que um dia você descobre que tudo é só uma grande fachada. O ser humano é apegado as suas coisas. Somos possessivos por natureza, seja por proteção própria ou por proteção a espécie. Somos consumistas e acostumados com as mil coisas que podemos adquirir.
Fui uma criança feliz. Tinha tudo e mais um pouco. Mas a cabeça da gente é uma caixinha que gosta de criar casos e traumas, onde eles menos existem. Apesar de minha timidez e meus poucos amigos, nunca me senti uma pessoa sozinha. Fui considerada inteligente, mas isso não me fez diferença nas coisas que aprendi com a vida.
Era exemplar, de bons modos. Era educada e polida, até demais. Tudo em mim era certo demais. Portanto, algo em minha vida tinha que dar errado.
Sempre tive emoções conturbadas e procurei problemas onde eles nunca estiveram. Minhas paixões adolescentes eram doloridas e frustrantes. Meus relacionamentos eram curtos e sem significado. Eu não me apegava a ninguém. Sempre achei que poderia resolver meus problemas sozinha e que na minha vida, existia um propósito maior do que eu poderia enxergar.
Mas nessas horas em que você quer ter algo que possa significar e se lembrar, algo que você quer dizer que sofreu, e que sentiu dor pela primeira vez, fiz com que meu coração fosse partido por vontade própria.
Não me pergunte por que, por quem e nem como. Nem eu mesmo acho que lembro. Quando a gente sofre, não sabe o que é estado temporal das coisas. Não sabe exatamente porque passa por tantas coisas que depois vai fazer com que se sinta ridículo.
Quando a vida parecia não ter uma solução agradável, e a adolescência se sobrepõe, conheci Daniel.
Daniel era uma pessoa normal. Estávamos em situações parecidas. Aparentemente ele e eu, de corações partidos. O que percebi ao longo do tempo, que não era bem assim. Namorei Daniel, convenientemente, por alguns meses, até meu colegial acabar.
Quando me formei no segundo grau, me senti perdida. Pensei o que faria e como seria minha vida. Eu não queria ser medíocre como todas as outras pessoas. Afinal de contas, eu não me sentia medíocre. Grande bobagem minha.
Na época, eu tinha um amigo, o Alex, que morava fora da cidade. Eu era da cidade grande, e ele, da cidade pequena. Mas tínhamos alguns objetivos em comum. Fui esquecer um pouco da vida. Colocar os planos no lugar.
O Alex era daqueles amigos que você não precisa conhecer, pra saber o quanto ele é importante.
Nossa história começou num anúncio de revista, para aquelas pessoas que querem conhecer outras que gostam das mesmas coisas que você. Óbvio que isso hoje está mais do que ultrapassado, com a internet tão presente na vida das pessoas. Mas eu disse que contaria a história de uma forma cronologicamente correta, mas não que ela seria exatamente da época de vocês que estão lendo hoje.
Brincadeiras a parte, eu e o Alex nos tornamos amigos de carta. Posso dizer que amigos muito íntimos, muito confidentes, muito mais próximos do que todos os outros amigos que eu tinha.
Quando eu decidi fazer a viagem, eu não pude pensar em ir visitar outra pessoa. Confesso que primeiramente fiquei com medo, porque as pessoas na vida real são muito diferentes que no papel. Ou na tela de um computador, numa letra de música, num filme ou numa novela do horário nobre.
As pessoas na vida real acordam muito bem ou muito mal humoradas. Tem hábitos esquisitos, uma voz diferente daquela que você imagina. Uma risada às vezes bizarra. E com certeza, elas têm defeitos que não te agradam.
Comigo e com ele, não seria diferente de nenhum outro relacionamento à distância. Se bem que entre nós, não existia um relacionamento que não fosse mesmo nossa amizade. Mas era algo diferente daquilo que estávamos acostumados.
Alex me recebeu com muito carinho e afeto na república em que morava próximo ao local onde fazia o cursinho para o vestibular. Ele era alto, corpulento, os cabelos bem negros e lisos, com traços marcantes no rosto de alguém que sofreu coisas na vida, que eu nunca imaginaria sofrer. Sua voz era grossa e seu sotaque diferenciado era suave, assim como o seu jeito de andar e de se portar.
Nosso histórico de afetividade era tão intenso, que todos aqueles meus medos se quebraram com o abraço que recebi quando ele me pegou na rodoviária. Ele sorriu pra mim, dando as boas vindas e logo olhou nos meus olhos e disse – ‘pronto, o meu medo já passou’ - dando uma risada larga e gostosa.
Eu também ri e perguntei o porquê daquilo. E ele com suas respostas quase sempre prontas de bom observador, disse que tinha medo que eu me decepcionasse assim que o visse. Conversamos todo o trajeto como se fossemos amigos de infância e nos tivéssemos visto há minutos atrás.
Cada qual com suas manias, defeitos e humores a parte, nos dávamos bem. Muito bem, como nas cartas. Ele observava todas as palavras e movimentos que eu fazia, e eu, prolixa de sempre, falava sem ao menos dar tempo de que meu pensamento concluísse na cabeça.
Entendíamos-nos com olhares e com pequenas frases de amizade regional e ciumenta, que tínhamos criado ao longo de todo aquele tempo de confissões mudas e lidas.
Aqueles dias foram ótimos. Muito calor. Conheci lugares que nunca imaginei conhecer. Visitei rios e pedaços de mata virgem. Vi o dia amanhecer na companhia de ninguém mais, além de mim.
Festas, festas e mais festas. Era legal ter certa liberdade e não ter que pensar em que os outros pensariam de mim. Era bom poder acordar a hora que queria, e fazer o dia se tornar interessante por qualquer coisa.
Conheci as pessoas mais diferentes, os costumes mais tradicionais e entendi que o mundo era realmente diferenciado daquilo que vivia. E naquele tempo, coisas que não tinham sido confessas, foram reveladas.
A cada momento que passava, nossa vida era mais e mais um livro aberto. E entendíamos mais e mais um ao outro, sem o menos ter que formular teorias mirabolantes sobre o comportamento, a índole e a dignidade de cada um presente.
Nessas conversas malucas, no meio da madrugada, resolvi mudar de vida. Falava ao Lex, o quanto não ser mais um era importante para mim. Tracei objetivos. Sonhei com uma vida diferente. Pensei que vida mudaria do dia para noite.
Eu não tinha nada a perder. Não tinha uma escolha profissional. Não tinha expectativas, nem sonhos grandiosos a cumprir após aqueles anos de estudo. Eu queria viver minha vida, e descobrir a cada passo o que deveria fazer.
Então, num ímpeto solitário de uma sinapse perdida decidi que sairia do país. Quero dizer, decidimos. E estávamos sóbrios o suficiente para não mantermos a idéia só no papel. Meus pais tinham guardado um dinheiro, pra eu poder fazer o curso que eu quisesse, em qualquer lugar.
Despedi-me do Lex numa tarde ensolarada e de calor escaldante, com a certeza de que o veria em breve. E que a partir daquele momento, nossa amizade tinha tomado um nível diferente da relação em que os mais impuros podem pensar por aí. Era sólida, grandiosa, e sabia que mesmo depois de anos, eu poderia contar com as suas mãos em qualquer lugar que estivesse sob qualquer situação que me encontrasse.
Enquanto vinha embora, com as músicas que tomamos como nossas no último em meus ouvidos e em meio a algumas lágrimas nos olhos, pensava no bendito dinheiro. Aquele que poderia usar como quisesse. E não abriria mão disso.
Lógico que quando voltei com a notícia de minha decisão, meus pais me proibiram terminantemente de fazer. Foram brigas, discussões, choros e muita incompreensão. Mas já não tinha mais jeito. Já estava tudo decidido, e ninguém poderia mais me frear. Aquele dinheiro era meu e só eu decidiria como usá-lo.
Para explicar a vocês porque digo tudo isso, vou falar um pouco da minha família. Meus pais sempre foram um tanto rígidos. A educação que eles me deram era daquelas mais tradicionais. Nossa aproximação era pequena, superficial. Eu sempre pensava duas vezes antes de fazer as coisas. O meu medo era ser descoberta. Descoberta de coisas que nunca fiz.
Mas eu era única. E todos achavam que por esse fato tinha sido mimada, perdida, alienada. Que tinha tudo na mão do jeito que quisesse. Mas não era bem assim. Agradar aqueles que te cobram resultados e respeito, não é o mesmo que crescer num ambiente que estimulam a criação de sua responsabilidade por seus atos de coragem.
Cobrar respeito não faz de você responsável e não faz você ter alguém em quem se espelhar mais tarde. Mas os pais só percebem isso, quando seus filhos resolvem sumir, e voltar algumas vezes somente para o Natal.
Mas eu era responsável, por personalidade, por orgulho próprio. Era comum até. Não era tão diferente das outras pessoas, mas não sabia agir diferentemente longe de meus pais. Era responsável demais. Era obstinada demais. Mas também era decidida demais.
Sempre pensei que assim que crescesse, iria me tornar uma pessoa diferente. Iria agir por minhas próprias vontades. Achei que a partir do momento em que eu tivesse o controle sobre minha vida, nenhum mal poderia mais me atingir.
Mas onde estava esse maldito controle sobre a vida, que nunca chegava? O que mais eu deveria fazer e qual melhor comportamento eu deveria ter para alguém lá em cima ouvir a minha tão sonhada prece?
Quando terminei o colégio, nada mais importava. Aquela vida era muito pequena pra mim. Eu via o mundo e queria abraçá-lo. Eu queria mais. E sabia que poderia ter mais.
Não tinha chantagem emocional que fizesse com que eu voltasse atrás na minha decisão. Era a única porta que eu tinha pra poder me apegar e sumir de vez desse mundo que não me pertencia. Não tinha cristão que me provasse que eu estava errada e não deveria correr atrás dos meus sonhos. Eu estava pronta para encarar os meus medos de frente.
Nessa época, eu ainda mantinha contato com Daniel. E logo que decidi viajar, ele me fez mil perguntas para onde eu ia e o que faria. Eu falava toda empolgada, comentava sobre todas as minhas ilusões.
Comentava sobre a viagem, as resoluções, as paisagens das fotos, o sorriso estampado no meu rosto, que ele olhava com os olhos meio confusos.
Daniel nunca tinha me visto tão feliz em todo o tempo que estávamos juntos. Mas pela primeira vez eu me sentia feliz, sem ser piegas, sem ser impuro. Era a minha vida que estava em jogo, e eu queria mais do que qualquer um, que ela fosse só minha.
Lembro-me como se fosse hoje. Desci no aeroporto de Seattle, num dia nublado, frio e chuvoso.
Prefácio



Eu comecei esta história como um projeto de diário eletrônico, sem datas, nem referências. Tudo isso que está escrito aqui hoje, já foi publicado um dia. Naquela época não tinha a idéia de que a história fosse se tornar interessante, pelo menos a mim, escritora.
Lembro que comecei a escrever porque tinha perdido um amigo. Não daqueles que estavam comigo praticamente todos os dias, mas um que era próximo, mesmo que não nos falássemos quase nunca.
Depois de ter dito o quanto sentia falta dele, e o quanto ele era importante pra mim, nunca mais sequer citei ele em nenhuma parte do diário. Até hoje espero que sua alma esteja em paz, já que seu corpo não está mais entre nós, e seu rosto só é uma lembrança boa dos tempos antigos. Talvez esse fosse o grande impulso que fez com que eu colocasse todas as minhas memórias em um papel.
Tenho pena do que lhe aconteceu. E tenho mais pena em saber que não devemos sequer alimentar um milésimo desse sentimento dentro de nós.
Tenho saudades daquela época. Hoje já não vivo mais a mesma realidade. Não tenho mais os mesmos sonhos adolescentes, mas sou capaz de cometer as mesmas loucuras. O que era presente virou um passado forte, mas distante e com muitos significados.
Depois de algum tempo percebi que certas coisas estavam muito confusas de serem entendidas, então resolvi manter as coisas sem referências, mas com uma cronologia mais acessível.
Quem me conhece sabe que não sou de muitos rodeios. Nem de muitos elogios. Basta saber que o que vocês lerão é algo que quero compartilhar com todos. São fantasmas exorcizados e alguns maus entendidos não resolvidos, como existem na vida de qualquer um.
Não há técnicas mirabolantes, nem nada ímpar e inigualável. É o cotidiano, o dia a dia de qualquer ser humano comum, com um pouco de poesia que quis elaborar.
Aí está, o meu mundo.
Dedicatória



Dedico a todos aqueles que por anos estiveram ao meu lado, e por anos puderam entender que esse mundo não passa de uma grande brincadeira do subconsciente.