A noite de lua cheia
Na noite seguinte, iríamos pedir nossas contas. Queríamos receber nosso dinheiro dos dias trabalhados, somente. Não nos importava mais nada, só o que trabalhamos.
Éramos ilegais, não podíamos chegar exigindo algo que não seria nos dado. Trabalhamos até o final da semana, e não trabalharíamos mais.
Aquela seria a última noite downtown. E eu estava feliz porque, no dia seguinte, deixaríamos nossos tão queridos insetos pra trás. E dormiríamos num lugar limpo, com chuveiro quente e aquecedor.
Era domingo, eu não sabia mais o que era cansaço. A semana tinha sido de tanta correria e alguns percalços que eu só via a minha tão sonhada folga de alguns dias pra poder organizar, nosso novo apartamento e me preparar para os novos empregos que estavam por fim.
Quando lavei o último copo às quase quatro e meia da manhã, olhei pro Lex, tirei o avental e disse ‘fim’. Seria o fim, se aquele fim de noite não tivesse se tornado um pesadelo constante de coisas que só acontecem na imaginação de pessoas supersticiosas.
Cheguei em frente ao caixa do bar, ouvindo uma discussão calorosa entre Daniel e o dono do bar. Cheio de razão inexistente o homem dizia que tínhamos que cumprir um ‘contrato’, que por nós nunca tinha sido assinado. E se não trabalhássemos mais um mês de graça, nada feito de ver nossa grana.
“UM MÊS DE GRAÇA?!?”, gritou Daniel quando chegamos perto dele. E ele com um sorriso de sádico sinalizou afirmativamente com a cabeça. Era pegar ou largar.
Tudo bem, éramos ilegais, mas não éramos escravos de ninguém. Aquilo era o cúmulo de todos os cúmulos. Ninguém ia trabalhar de graça pra ninguém. E ninguém era obrigado a passar por aquilo, por piores que fossem nossas condições financeiras.
Não tinha argumento contra o sádico. Sabíamos que ele não prestava, mas não sabíamos que era tanto. Era aquilo, ou então ele ficaria com nossos instrumentos em troca do seu ‘ absurdo prejuízo’.
Não dava pra chamar a polícia, não dava pra processar, nada dava. O que dava era abrir mão de nossos salários. E isso ninguém queria. Faria falta na hora de colocarmos nossas vidas nos eixos.
Foi quando o sádico resolveu dar outra sugestão. Se eu dormisse com ele, ele nos daria o salário e deixaria com que levássemos embora nossas coisas, afinal, toda gringa era prostituta mesmo.
Lex voou no pescoço do sádico, enquanto um dos seguranças me segurou pelo braço e o outro se atracava com Daniel.
Foi arranhão, mordida, soco, tapa, sangue. Nossos instrumentos pra fora e salário voando de nossas mãos.
O que a gente ia fazer pra comer e pagar o aluguel do mês pro Sam, eu não sabia. Pela primeira vez, eu tinha sofrido mais do que na pele o que era o preconceito. E depois de passar por isso, eu começava a redefinir mais as idéias que tinha em mente.
Meus braços tinham marcas roxas. Daniel tinha um nariz sangrando e um corte na testa. Lex um olho roxo e uns hematomas se espalhando pelo corpo.
Sentados na calçada, não tinham palavras. Não tinha nada. Eu segurava o violão elétrico, Daniel sua guitarra e Lex o que tinha sobrado da sua. Foi quando eu olhei pra cara de Lex e vi sua expressão de ‘estamos duros’. Comecei a rir.
Não era um riso normal. Era um riso contido de raiva, desespero, trauma, esquizofrenia. Sentada no meio fio, com os braços caídos sobre as pernas, meu corpo doía todo enquanto meus músculos se mexiam por vontade própria. Daniel deitado na calçada, a dois quarteirões do bar, ria de braços abertos, olhando pro céu. Lex balançava sua cabeça e ria.
A desgraça era feita. Riamos de nossas infelicidades, que até ali, não eram poucas. Riamos de nossa condição ridícula de acreditar nas pessoas. Ríamos de nós mesmos, porque aquela cena era a mais bizarra de todas.
Daniel passava suas mãos em minhas costas, e dizia ‘que linda noite de lua cheia’, enquanto o sol começava a despontar.
O Conclave
Há 13 anos
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