Dezoito Anos
Nasci. Hoje não importa quando, nem como, mas nasci. Passei infância e adolescência no meu país. Por vezes desejei conhecer outros lugares, mas nunca tive tal independência financeira e nem pessoal.
Mas não conhecia, ou melhor, não conheço o país em que morei por dezoito anos. Um grande erro meu, devo admitir. Nada como a pátria que nos acolheu. Nada como a língua que você conhece, e domina. Nada como o calor das pessoas as quais você está acostumado a ver todos os dias.
Infeliz daquele que imagina ser mil maravilhas fora de seu lar. Infeliz daquele que imagina que o mundo é grande e cheio de novidades e oportunidades que possa lhe aparecer. Nem todo mundo é assim. Nem todas as oportunidades são merecedoras de segurarmos em nossas mãos.
Minha infância foi normal. Minha casa era estável e cheia de afetos que os murais gostam de mostrar. Pena que um dia você descobre que tudo é só uma grande fachada. O ser humano é apegado as suas coisas. Somos possessivos por natureza, seja por proteção própria ou por proteção a espécie. Somos consumistas e acostumados com as mil coisas que podemos adquirir.
Fui uma criança feliz. Tinha tudo e mais um pouco. Mas a cabeça da gente é uma caixinha que gosta de criar casos e traumas, onde eles menos existem. Apesar de minha timidez e meus poucos amigos, nunca me senti uma pessoa sozinha. Fui considerada inteligente, mas isso não me fez diferença nas coisas que aprendi com a vida.
Era exemplar, de bons modos. Era educada e polida, até demais. Tudo em mim era certo demais. Portanto, algo em minha vida tinha que dar errado.
Sempre tive emoções conturbadas e procurei problemas onde eles nunca estiveram. Minhas paixões adolescentes eram doloridas e frustrantes. Meus relacionamentos eram curtos e sem significado. Eu não me apegava a ninguém. Sempre achei que poderia resolver meus problemas sozinha e que na minha vida, existia um propósito maior do que eu poderia enxergar.
Mas nessas horas em que você quer ter algo que possa significar e se lembrar, algo que você quer dizer que sofreu, e que sentiu dor pela primeira vez, fiz com que meu coração fosse partido por vontade própria.
Não me pergunte por que, por quem e nem como. Nem eu mesmo acho que lembro. Quando a gente sofre, não sabe o que é estado temporal das coisas. Não sabe exatamente porque passa por tantas coisas que depois vai fazer com que se sinta ridículo.
Quando a vida parecia não ter uma solução agradável, e a adolescência se sobrepõe, conheci Daniel.
Daniel era uma pessoa normal. Estávamos em situações parecidas. Aparentemente ele e eu, de corações partidos. O que percebi ao longo do tempo, que não era bem assim. Namorei Daniel, convenientemente, por alguns meses, até meu colegial acabar.
Quando me formei no segundo grau, me senti perdida. Pensei o que faria e como seria minha vida. Eu não queria ser medíocre como todas as outras pessoas. Afinal de contas, eu não me sentia medíocre. Grande bobagem minha.
Na época, eu tinha um amigo, o Alex, que morava fora da cidade. Eu era da cidade grande, e ele, da cidade pequena. Mas tínhamos alguns objetivos em comum. Fui esquecer um pouco da vida. Colocar os planos no lugar.
O Alex era daqueles amigos que você não precisa conhecer, pra saber o quanto ele é importante.
Nossa história começou num anúncio de revista, para aquelas pessoas que querem conhecer outras que gostam das mesmas coisas que você. Óbvio que isso hoje está mais do que ultrapassado, com a internet tão presente na vida das pessoas. Mas eu disse que contaria a história de uma forma cronologicamente correta, mas não que ela seria exatamente da época de vocês que estão lendo hoje.
Brincadeiras a parte, eu e o Alex nos tornamos amigos de carta. Posso dizer que amigos muito íntimos, muito confidentes, muito mais próximos do que todos os outros amigos que eu tinha.
Quando eu decidi fazer a viagem, eu não pude pensar em ir visitar outra pessoa. Confesso que primeiramente fiquei com medo, porque as pessoas na vida real são muito diferentes que no papel. Ou na tela de um computador, numa letra de música, num filme ou numa novela do horário nobre.
As pessoas na vida real acordam muito bem ou muito mal humoradas. Tem hábitos esquisitos, uma voz diferente daquela que você imagina. Uma risada às vezes bizarra. E com certeza, elas têm defeitos que não te agradam.
Comigo e com ele, não seria diferente de nenhum outro relacionamento à distância. Se bem que entre nós, não existia um relacionamento que não fosse mesmo nossa amizade. Mas era algo diferente daquilo que estávamos acostumados.
Alex me recebeu com muito carinho e afeto na república em que morava próximo ao local onde fazia o cursinho para o vestibular. Ele era alto, corpulento, os cabelos bem negros e lisos, com traços marcantes no rosto de alguém que sofreu coisas na vida, que eu nunca imaginaria sofrer. Sua voz era grossa e seu sotaque diferenciado era suave, assim como o seu jeito de andar e de se portar.
Nosso histórico de afetividade era tão intenso, que todos aqueles meus medos se quebraram com o abraço que recebi quando ele me pegou na rodoviária. Ele sorriu pra mim, dando as boas vindas e logo olhou nos meus olhos e disse – ‘pronto, o meu medo já passou’ - dando uma risada larga e gostosa.
Eu também ri e perguntei o porquê daquilo. E ele com suas respostas quase sempre prontas de bom observador, disse que tinha medo que eu me decepcionasse assim que o visse. Conversamos todo o trajeto como se fossemos amigos de infância e nos tivéssemos visto há minutos atrás.
Cada qual com suas manias, defeitos e humores a parte, nos dávamos bem. Muito bem, como nas cartas. Ele observava todas as palavras e movimentos que eu fazia, e eu, prolixa de sempre, falava sem ao menos dar tempo de que meu pensamento concluísse na cabeça.
Entendíamos-nos com olhares e com pequenas frases de amizade regional e ciumenta, que tínhamos criado ao longo de todo aquele tempo de confissões mudas e lidas.
Aqueles dias foram ótimos. Muito calor. Conheci lugares que nunca imaginei conhecer. Visitei rios e pedaços de mata virgem. Vi o dia amanhecer na companhia de ninguém mais, além de mim.
Festas, festas e mais festas. Era legal ter certa liberdade e não ter que pensar em que os outros pensariam de mim. Era bom poder acordar a hora que queria, e fazer o dia se tornar interessante por qualquer coisa.
Conheci as pessoas mais diferentes, os costumes mais tradicionais e entendi que o mundo era realmente diferenciado daquilo que vivia. E naquele tempo, coisas que não tinham sido confessas, foram reveladas.
A cada momento que passava, nossa vida era mais e mais um livro aberto. E entendíamos mais e mais um ao outro, sem o menos ter que formular teorias mirabolantes sobre o comportamento, a índole e a dignidade de cada um presente.
Nessas conversas malucas, no meio da madrugada, resolvi mudar de vida. Falava ao Lex, o quanto não ser mais um era importante para mim. Tracei objetivos. Sonhei com uma vida diferente. Pensei que vida mudaria do dia para noite.
Eu não tinha nada a perder. Não tinha uma escolha profissional. Não tinha expectativas, nem sonhos grandiosos a cumprir após aqueles anos de estudo. Eu queria viver minha vida, e descobrir a cada passo o que deveria fazer.
Então, num ímpeto solitário de uma sinapse perdida decidi que sairia do país. Quero dizer, decidimos. E estávamos sóbrios o suficiente para não mantermos a idéia só no papel. Meus pais tinham guardado um dinheiro, pra eu poder fazer o curso que eu quisesse, em qualquer lugar.
Despedi-me do Lex numa tarde ensolarada e de calor escaldante, com a certeza de que o veria em breve. E que a partir daquele momento, nossa amizade tinha tomado um nível diferente da relação em que os mais impuros podem pensar por aí. Era sólida, grandiosa, e sabia que mesmo depois de anos, eu poderia contar com as suas mãos em qualquer lugar que estivesse sob qualquer situação que me encontrasse.
Enquanto vinha embora, com as músicas que tomamos como nossas no último em meus ouvidos e em meio a algumas lágrimas nos olhos, pensava no bendito dinheiro. Aquele que poderia usar como quisesse. E não abriria mão disso.
Lógico que quando voltei com a notícia de minha decisão, meus pais me proibiram terminantemente de fazer. Foram brigas, discussões, choros e muita incompreensão. Mas já não tinha mais jeito. Já estava tudo decidido, e ninguém poderia mais me frear. Aquele dinheiro era meu e só eu decidiria como usá-lo.
Para explicar a vocês porque digo tudo isso, vou falar um pouco da minha família. Meus pais sempre foram um tanto rígidos. A educação que eles me deram era daquelas mais tradicionais. Nossa aproximação era pequena, superficial. Eu sempre pensava duas vezes antes de fazer as coisas. O meu medo era ser descoberta. Descoberta de coisas que nunca fiz.
Mas eu era única. E todos achavam que por esse fato tinha sido mimada, perdida, alienada. Que tinha tudo na mão do jeito que quisesse. Mas não era bem assim. Agradar aqueles que te cobram resultados e respeito, não é o mesmo que crescer num ambiente que estimulam a criação de sua responsabilidade por seus atos de coragem.
Cobrar respeito não faz de você responsável e não faz você ter alguém em quem se espelhar mais tarde. Mas os pais só percebem isso, quando seus filhos resolvem sumir, e voltar algumas vezes somente para o Natal.
Mas eu era responsável, por personalidade, por orgulho próprio. Era comum até. Não era tão diferente das outras pessoas, mas não sabia agir diferentemente longe de meus pais. Era responsável demais. Era obstinada demais. Mas também era decidida demais.
Sempre pensei que assim que crescesse, iria me tornar uma pessoa diferente. Iria agir por minhas próprias vontades. Achei que a partir do momento em que eu tivesse o controle sobre minha vida, nenhum mal poderia mais me atingir.
Mas onde estava esse maldito controle sobre a vida, que nunca chegava? O que mais eu deveria fazer e qual melhor comportamento eu deveria ter para alguém lá em cima ouvir a minha tão sonhada prece?
Quando terminei o colégio, nada mais importava. Aquela vida era muito pequena pra mim. Eu via o mundo e queria abraçá-lo. Eu queria mais. E sabia que poderia ter mais.
Não tinha chantagem emocional que fizesse com que eu voltasse atrás na minha decisão. Era a única porta que eu tinha pra poder me apegar e sumir de vez desse mundo que não me pertencia. Não tinha cristão que me provasse que eu estava errada e não deveria correr atrás dos meus sonhos. Eu estava pronta para encarar os meus medos de frente.
Nessa época, eu ainda mantinha contato com Daniel. E logo que decidi viajar, ele me fez mil perguntas para onde eu ia e o que faria. Eu falava toda empolgada, comentava sobre todas as minhas ilusões.
Comentava sobre a viagem, as resoluções, as paisagens das fotos, o sorriso estampado no meu rosto, que ele olhava com os olhos meio confusos.
Daniel nunca tinha me visto tão feliz em todo o tempo que estávamos juntos. Mas pela primeira vez eu me sentia feliz, sem ser piegas, sem ser impuro. Era a minha vida que estava em jogo, e eu queria mais do que qualquer um, que ela fosse só minha.
Lembro-me como se fosse hoje. Desci no aeroporto de Seattle, num dia nublado, frio e chuvoso.
O Conclave
Há 13 anos
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